quinta-feira, 28 de dezembro de 2017

O Cacto

Aquele cacto lembrava os gestos desesperados da estatuária:
Laocoonte constrangido pelas serpentes,
Ugolino e os filhos esfaimados.
Evocava também o seco Nordeste, carnaubais, caatingas...
Era enorme, mesmo para esta terra de feracidades excepcionais.

Um dia um tufão furibundo abateu-os pela raiz.
O cacto tombou atravessado na rua,
Quebrou os beirais do casario fronteiro,
Impediu o trânsito de bondes, automóveis, carroças,
Arrebentou os cabos elétricos e durante vinte e quatro
horas privou a cidade de iluminação e energia:

— Era belo, áspero, intratável.

Manuel Bandeira

quarta-feira, 27 de dezembro de 2017

Sobre a-mar-te II


Agora, sempre que eu me pego pensando em você, 
Há um quê de tristeza que me invade as narinas e me afoga.
As recordações te buscam e meu coração titubeia: 
Como teria sido se eu houvesse agido diferente?
Os pulmões se enchem e não consigo nadar. 

Imerso em ti, meu corpo exala o cheiro 
Do teu perfume que tanto faz falta. 
Por que me deixei à deriva? 
“Mar calmo nunca fez bom marinheiro”, 
pois volte a me atormentar, 
vire-me de ponta cabeça em tua tempestade.

“Capitão, vamos afundar!”, 
grita o coração com um sorriso e, 
aos frangalhos, 
assisto o que poderia ter sido,
se houvesse sido, 
escoando-me pelos dedos.

Sobre a-mar-te


Hei de contar de ti aos meus netos,
Usando-me da analogia a que te associei: o mar.
Explico-me: o mar é tão vasto, profundo, misterioso,
Tão violento e amedrontador
Que me parecia a palavra perfeita para te elogiar.

Sempre me admirei com o mar
E poderia passar horas o observando:
Como a ti, em tuas corriqueirices,
Nos momentos de prazer,
Ao dobrar o corredor desatenta,
Os meus olhos se deleitavam com tua presença.

Em um mês eu já era teu,
O peito aos solavancos entregava os sentimentos
Que meus lábios emudeciam,
Era só te ver e me sentir flutuar em tua voz,
Em tua presença e tua ausência.
Tudo era você e você era tudo o que havia.
Nunca apavorei-me tanto.

Aos dois meses eu já estava cativo de tua paisagem
E esperava, paciente, deitar meus olhos sobre os teus
Enquanto o sol espreguiçava do lado de fora.
A lua espreitava-me implorando que dormisse,
Mas tudo o que eu desejava
Era ser tragado por sua imensidão noite afora, dia adentro.
Perder-me em seus movimentos.

Escrevi-te cem poemas aos três meses,
Todos temiam o afogamento.
Em ti, no sentimento, em mim.
As ânsias torturavam-me.
Perdi-me em tua corrente,
E embriagado pela profundeza,
Eu quis voltar ao cais.

Atirei-me à praia,
Praguejei aos céus por me deixar levar.
Com a cabeça entre os joelhos,
Cuspi tudo o que engoli de ti.
À distância eu te vi sorrir,
Juntei meus restos e parti.
Navegar não é preciso.

quinta-feira, 21 de dezembro de 2017

Fazer poesia é sobre enxergar muito mais do mundo
Que em seu contraste confuso
Cansa as retinas
E envelhece os corações

É sobre enxergar as pessoas
Em cada uma de suas delicadas minúcias
Que encantam o poeta
E lhe ensandecem a razão

É sobre despir-se de certezas
E desnudo emaranhar-se com os nós das palavras
Traduzindo à mão
As dores intocadas

É muito mais do que rima,
É libertar-se dessa sina.
Porque é muito mais ser um meio
Do que ter um fim.

Eu não quero escrever sobre toda a confusão que permeia minha vida Eu não quero escrever sobre a falta que permeia minhas relações Eu não ...