domingo, 17 de março de 2019

Eu não quero escrever sobre toda a confusão que permeia minha vida
Eu não quero escrever sobre a falta que permeia minhas relações
Eu não quero escrever sobre a raiva que permeia minhas ações
Eu não quero escrever sobre o outro sempre ausente
Eu não quero escrever sobre tudo o que já é conhecido e repetido
Eu não quero mais escrever.

Tudo o que sobrou foi o cheiro de morte e urina que me invade as narinas.ttttttttQN M;t
A carne rasgada por debaixo das unhas
mhjnO desespero arrebatador de que a zona de conforto descarrilhe  em algmaannnnnnnnnnnnnnjuma dessas curvas da vida
E a dor pulsante por tudo parecer errado.

Eu não quero mais escrever sobre estar aqui, sem estar.
Sobre lutar sem empunhar qualquer arma.
Sobre tentar sem, no fundo, sair de qualquer lugar.
Sobre ser, mas ser nada.
Eu não sei mais o que escrever.

quinta-feira, 27 de setembro de 2018

Não hei-de escrever-te cem versos
Nem jurar-te mil promessas
Tampouco hei-de transbordar de ti
Ou te afogar em mim.

Mas hei-de contar tuas pintas
Beijar-te as pálpebras
Deixar-te florescer entre minhas costelas (ou pelas pernas)
Deixar meus olhos sorrirem por você

Meus dedos incansáveis desejam 
Sua pele que é calmaria
E descanso em tarde chuvosa
A tempestade cessou, meu bem:
Amar-te é poesia.

quinta-feira, 28 de dezembro de 2017

O Cacto

Aquele cacto lembrava os gestos desesperados da estatuária:
Laocoonte constrangido pelas serpentes,
Ugolino e os filhos esfaimados.
Evocava também o seco Nordeste, carnaubais, caatingas...
Era enorme, mesmo para esta terra de feracidades excepcionais.

Um dia um tufão furibundo abateu-os pela raiz.
O cacto tombou atravessado na rua,
Quebrou os beirais do casario fronteiro,
Impediu o trânsito de bondes, automóveis, carroças,
Arrebentou os cabos elétricos e durante vinte e quatro
horas privou a cidade de iluminação e energia:

— Era belo, áspero, intratável.

Manuel Bandeira

quarta-feira, 27 de dezembro de 2017

Sobre a-mar-te II


Agora, sempre que eu me pego pensando em você, 
Há um quê de tristeza que me invade as narinas e me afoga.
As recordações te buscam e meu coração titubeia: 
Como teria sido se eu houvesse agido diferente?
Os pulmões se enchem e não consigo nadar. 

Imerso em ti, meu corpo exala o cheiro 
Do teu perfume que tanto faz falta. 
Por que me deixei à deriva? 
“Mar calmo nunca fez bom marinheiro”, 
pois volte a me atormentar, 
vire-me de ponta cabeça em tua tempestade.

“Capitão, vamos afundar!”, 
grita o coração com um sorriso e, 
aos frangalhos, 
assisto o que poderia ter sido,
se houvesse sido, 
escoando-me pelos dedos.

Sobre a-mar-te


Hei de contar de ti aos meus netos,
Usando-me da analogia a que te associei: o mar.
Explico-me: o mar é tão vasto, profundo, misterioso,
Tão violento e amedrontador
Que me parecia a palavra perfeita para te elogiar.

Sempre me admirei com o mar
E poderia passar horas o observando:
Como a ti, em tuas corriqueirices,
Nos momentos de prazer,
Ao dobrar o corredor desatenta,
Os meus olhos se deleitavam com tua presença.

Em um mês eu já era teu,
O peito aos solavancos entregava os sentimentos
Que meus lábios emudeciam,
Era só te ver e me sentir flutuar em tua voz,
Em tua presença e tua ausência.
Tudo era você e você era tudo o que havia.
Nunca apavorei-me tanto.

Aos dois meses eu já estava cativo de tua paisagem
E esperava, paciente, deitar meus olhos sobre os teus
Enquanto o sol espreguiçava do lado de fora.
A lua espreitava-me implorando que dormisse,
Mas tudo o que eu desejava
Era ser tragado por sua imensidão noite afora, dia adentro.
Perder-me em seus movimentos.

Escrevi-te cem poemas aos três meses,
Todos temiam o afogamento.
Em ti, no sentimento, em mim.
As ânsias torturavam-me.
Perdi-me em tua corrente,
E embriagado pela profundeza,
Eu quis voltar ao cais.

Atirei-me à praia,
Praguejei aos céus por me deixar levar.
Com a cabeça entre os joelhos,
Cuspi tudo o que engoli de ti.
À distância eu te vi sorrir,
Juntei meus restos e parti.
Navegar não é preciso.

quinta-feira, 21 de dezembro de 2017

Fazer poesia é sobre enxergar muito mais do mundo
Que em seu contraste confuso
Cansa as retinas
E envelhece os corações

É sobre enxergar as pessoas
Em cada uma de suas delicadas minúcias
Que encantam o poeta
E lhe ensandecem a razão

É sobre despir-se de certezas
E desnudo emaranhar-se com os nós das palavras
Traduzindo à mão
As dores intocadas

É muito mais do que rima,
É libertar-se dessa sina.
Porque é muito mais ser um meio
Do que ter um fim.

domingo, 1 de outubro de 2017

Conheci um homem de olhos tristes
Era fim de tarde de um dia abafado
Fazia 26º graus e o movimento estava lento
Algumas pessoas agoniadas esperavam seus ônibus

Ele puxou assunto sobre meu cabelo
Perguntou sobre minhas tatuagens
Sabia de onde cada verso havia saído
Contou de seu dia, de seu trabalho, de sua família.
Me olhava nos olhos, com um misto de interesse e carinho.

Pediu as horas. Disse que há muito não via alguém
de minha idade que ainda usava relógio e lia Shakespeare:
"Toda essa tecnologia, a impaciência".
Contei que há muito não conversava despretensiosamente
com alguém no ponto de ônibus.
Nos olhamos nos olhos,
com o mesmo misto de carinho e cumplicidade,
almas que se tocavam.

Pediu desculpa por "tagarelar", mas estava tendo um dia difícil
achava raro encontrar gente assim:
"Como um táxi disponível no ponto, quase acenando para que alguém se aproxime".
Surgiu um pontinho de alegria,
não em seus olhos tristes,
mas em meus olhos cansados.

Pegou seu ônibus e nunca mais o vi,
e confesso, também, que nunca o esqueci.

Eu não quero escrever sobre toda a confusão que permeia minha vida Eu não quero escrever sobre a falta que permeia minhas relações Eu não ...